Pequeno Conto Noturno (21)

- Filho... - começa Deus.
- Filho é o cacete, mais respeito que eu sou seu pai - interrompe Rubens.
- Não vai querer entrar de novo nessas questões pseudofilosóficas, vai? - Deus, com um certo enfado na voz.
Rubens percebe que será mais uma daquelas noites. Nem três da manhã e o uísque em seu copo é o último. Calil, o vizinho sanguessuga que insiste em dizer que é seu amigo, havia passado para uma "visita" e mamou meia garrafa. Rubens odeia quando não consegue despistar Calil, odeia quando o uísque acaba e a madrugada continua. E agora isso, esse velho escroto.
-Não vou querer entrar em questão nenhuma, muito menos filosófica, tô correndo dessa merda. Aliás, quem Te chamou aqui? Aliás, eu nunca Te chamo.
- É que hoje senti sua alma particularmente conturbada - tenta contemporizar Deus.
- Tá de sacanagem comigo, né, seu velho safado? Desde quando você se importa com almas conturbadas? E isso de alma, também não é coisa de pseudofilosofia? A propósito, pseudofilosofia é redundância, é o único tipo que existe.
- Ponto para você - admite Deus - aliás, dois pontos, um pela pseudofilosofia e outro porque não me importo de forma alguma com as almas conflituosas; Lúcifer que cuide lá desses refugos de laboratório.
- Queria que as pessoas pudessem Te ouvir agora - e Rubens dá um gole contido no uísque, e acrescenta duas pedras de gelo, fazer render mais.
- Para você, que não acredita mesmo em Mim, eu posso dizer diretamente, mas falo o mesmo o tempo todo, para quem quiser ouvir, mostro isso em Minhas obras na natureza. A Mim, só interessa o forte, o que deu certo, os outros são experimentos fracassados, tubos de ensaio à descarte, faço isso direto com todos os animais e nunca houve problema algum... Mas foi só começar a fazer igual com os humanos e veio o chato do Lúcifer.
- E aí Você jogou ele no Inferno. - e mais um comedido gole de uísque de Rubens.
- Claro. Fui generoso, porém. Criei o Inferno especialmente para Lúcifer, uma dimensão inteira para ele pajear as pobres almazinhas perdedoras com as quais ele tanto se preocupa. Por tabela, Me livrei do mala. Lúcifer, lá no Céu, era o equivalente terreno dos defensores dos direitos humanos, dos assistentes sociais, dos psicólogos. O que você faria, Rubens, com um assistente social ou um psicólogo?
- Mandaria pro Inferno. Ponto para Você, velho safado. Mas ainda tá 2 a 1 para mim.
- A natureza/Eu não queremos nem conversa com os fracos e fracassados.
- Então, posso considerar que fui um de seus tubos de ensaio que deu certo? - e Rubens olha com tristeza o fundo do copo cada vez mais nítido.
- Você? Um tubo que deu certo? Agora é você que tá de sacanagem Comigo, mas pelo menos você não me enche o saco.
- Sei. E aí, Você resolveu vir encher o meu essa noite.
- Um pouco menos de revolta, rapaz, estamos só nós dois aqui, não tem ninguém mais te ouvindo. Além disso, dei coisas boas para vocês, também. O que me diz das bucetas? Não foram uma criação genial? Admita, conceda-Me mais um ponto pelas bucetas e concedo-lhe um 2 a 2 honroso.
- Criação genial teria sido fazer o pau com osso por dentro. Quanto às bucetas, gosto delas, sem dúvida, contudo elas são a rota mais curta para o Inferno. E agora que sei que aquilo é gerenciado por um assistente social, não quero cair lá de jeito nenhum.
- Ora, Rubens, não seja injusto com minhas bucetinhas...
- Buceta é foda. Querem tomar conta de tudo, controlar sua vida, vasculham e se metem em tudo, fuçam em nossos bolsos, carteiras, agendas, gavetas, e - a mais filha da puta que conheci - chegam até a hackear senhas e invadir nossas caixas de e-mails, mas eu ainda pego a biscate. Buceta é problema !
- Nada de um 2 a 2 honroso, então? - tenta Deus.
- Sem condescendências por hoje, Deus. Fim do tempo regulamentar. - e Rubens sorve os últimos mililitros do uísque.
- OK. Dou-Me por vencido. Por hoje. Mudando de assunto, meu filho, você não teria aí mais um pouco desse uísque para servir uma dose a um velho cansado?
- Só se Você transformar água em.
E Deus some.

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